sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Liturgia do jazz


Ele nasceu em Nova Orleans em 1901. Negro e pobre dos Estados Unidos, quando criança tocava nas ruas para conseguir o sustento de sua família. Louis Armstrong saiu das ruas para os palcos e teatros de todo o mundo que o imortalizou na história do jazz. Armstrong entregava sua alma quando tocava seu trompete e enchia seu espírito de luz quando sua voz soava como um trovão. A sensibilidade, a maestria e seu talento indiscutível mesmo para os leigos, de um dos criadores do jazz que revolucionou a musica e foi aplaudido pelo mundo.

Ella não teve uma vida diferente de Armstrong. Negra e pobre viveu nas ruas de Nova Iorque cantando para garantir sua sobrevivência. Sua belíssima voz e sua enorme capacidade de fazer da música instrumento de puro sentimentalismo e beleza artística são inquestionáveis. Ella Fitzgerald foi impedida muitas vezes de participar de festivais em teatros por considerá-la feia, mas sua voz era toda a magnitude e a música lhe titulou como a primeira dama do jazz. Percorreu palcos e todo o mundo reconheceu a áurea de sua arte.

Não era de imaginar outra coisa se não a plenitude jazzística quando Ella Fitzgerald e Louis Armstrong juntaram seus magníficos dotes artísticos para em 1956 gravarem o que historia discográfica do jazz poderia dizer que o jazz não seria o mesmo se Ella And Louis não fosse gravado. O disco abre divinamente com Can´t we be friends onde as teclas do piano sob os dedos enérgicos de Oscar Peterson espera os anfitriões para a liturgia dos deuses começar.

A voz de Ella parece extasiar os bons ouvidos. Seu improviso e seu famoso scat é de tamanha profundeza e penetração que quando solta seus agudos é de certo que seus pêlos eriçam e as fimbrias de seu âmago desprendem na ambiência. Armstrong não surpreende menos; seu trompete emite notas incríveis que o ar não parece sair de seus pulmões, mas sim de suas entranhas ásperas. Sua voz grave e rouca é a nuance perfeita com a delicadeza da voz de Ella. O disco é uma simbiose de dois mitos que celebram a arte e a paixão. Uma Odisséia em áudio onde Ella e Louis podem ser perfeitamente os deuses e o herói e quem os ouvem; a jornada é rumo ao desfecho do espetáculo onde deuses e heróis chegam ao orgasmo juntos. Quem na história da música poderia igualar a esta dupla? Janis Joplin e Jimi Hendrix? Não. Talvez Armstrong cedesse seu trompete ao piano de Tom Jobim que com sua voz juntaria a de Billie Holiday com aval, claro, de Ella e ouviríamos bem um jazz à bossa, aliás, uma bossa à jazz.

Como tudo que é bom é em dobro e se pereniza no ano seguinte, em 1957, Fitzgerald e Armstrong novamente unem seus talentos com Ella and Louis Again e definitivamente rompem todos os paradigmas para imortalizar seus nomes na música negra americana e inocular que, precipuamente, na música a estética é artística e nada mais.

Encontro importante para a música (só não tão quanto) foi em 1963 quando João Gilberto afinou seu violão e Stan Getz seu saxofone em Getz/Gilberto. O disco é uma relíquia da bossa-jazz e levou João e a bossa nova para o mundo. Como os senhores do jazz, João e Stan se encontraram no ano seguinte para gravar outro disco histórico. A propósito, João e Armstrong são de uma excepcionalidade musical não crível; a sensibilidade destes homens redeu aos amantes da boa música o próprio jazz e a bossa nova, embora esta última tenha raízes intrínsecas a primeira, a diferença, talvez, seja que enquanto uma irrompeu da negritude periférica estadunidense a outra emergiu dos apartamentos luxuosos de Copacabana e com muito uísque, inclusive.

Só mesmo a música e o jazz para fazer de talentos a hibridez de pérolas negras como Ella Fitzgerald e Louis Armstrong. O que podemos fazer é simplesmente reverenciar ambos com sua devida importância, pois o brilhantismo de cada um é inquestionável e unânime. O jazz não seria o mesmo se a marginalidade e a exclusão fosse empecilho para que Ella e Louis levarem ao mundo suas maestrias e certamente não seria o mesmo, também, se eles não se juntassem em 1956.

Ele nos deixou precocemente em 1971 e Ella em 1996. Gozaram de sucesso até suas saídas antecipadas, mas deixou um instrumento de beleza e verdadeira musicalidade que pode ser conferida em Ella and Louis, um clássico que não pode ser deixado de ouvir pelos os amásios da música.