domingo, 31 de maio de 2009

A reportagem tratada como ciência

A profissão do jornalista, embora não pareça, é precipuamente uma profissão de caráter social. Observar a realidade, colher e mostrar para a sociedade fatos plausíveis para discussão social de forma objetiva, consistente e contextualizada é dever de qualquer jornalista que honre a profissão. Caco Barcellos é desse jornalista; um jornalista social e científico; social, pois aborda assuntos que problematizam as relações sociais de poder, e científico porque suas reportagens têm uma abordagem extremamente profunda, investigativa, observatória e comparativa, pelo menos é o que percebi ao ler seu didático livro-reportagem Rota 66, a história da policia que mata (Ed. Globo).

Morte, como sabemos, se classifica como um critério de noticiabilidade, que cada vez mais os veículos de comunicação utilizam para fazer seus jornais-espetáculos. Todos os dias lemos nos jornais, ouvimos no rádio ou assistimos na televisão a morte do outro; o outro é o que está longe de nós, o que, forjadamente, a imprensa-burra incuti que a morte do outro não tem importância, ou melhor, ela foi melhor para a sociedade. São mortes de jovens, negros, pobres que aparecem na mídia todos os dias. “Bandido”, “assaltante”, “traficante”, “criminoso”, “pernicioso” são alguns nomes que a grande imprensa classifica esse individuo, sempre num tom de desdém, de alivio, de indiferença, mostrando o quanto a imprensa brasileira se comporta, além usurpar a opinião pública, usurpa o juiz da justiça, já sentenciando os suspeitos e indiciados. Apenas é mostrado seu nome, sua idade, sua cara e circunstância da morte. A cada dia mais um, outro dia, mais um. São jovens assassinados, apenas isso. Pouco se mostra a história dessas pessoas, suas origens, seu ambiente, seu contexto, sua educação, seus acessos aos bens mínimos que garantam ao homem o direito a cidadania, a participação social e política; o discernimento das coisas, seu ambiente cultural; nada se mostra das frustrações desses homens, das angustias vividas, das suas negações e privações. Não há espaço no jornal, não há interesse no jornal; é apenas mais um.

Caco Barcellos mostrou-se de um lado em Rota 66: o lado dos mais fracos; mostrou a versão e os fatos, mostrou a verdade. O que Caco provou é que a imprensa deixou de valer-se de fatos em detrimento de versões. A morte de um jovem a tiros em uma periferia de uma metrópole é um fato e os fatos noticiáveis devem responder as seis perguntas básicas do lead do texto jornalístico, mas quando as perguntas são respondidas oficialmente pelo Estado, que manda matar os negros nas favelas, são no mínimo esdrúxulas, que chego apenas a uma conclusão: a impressa-burra-burguesa é conivente com a ideologia mecanicista do Estado: indivíduos perniciosos a sociedade deve ser definitivamente excluídos da sociedade, pois não há recuperação; mas, pergunto eu, quem são esses indivíduos perniciosos? Os negros? Sim! É só observar a etnia dos assassinados a tiro nos jornais. È a ideologia racista que parte da premissa que o negro e naturalmente ruim, faz parte de sua essência ser ruim, é a sua natureza ser perverso, cruel, não há nenhum método que o recupere, nenhum processo de resocialização vai recuperá-lo, então o que fazemos? Matamo-los! Essa é o projeto do Estado em parceria com a imprensa: um genocídio nas periferias deste país.
Em Rota 66, a história da policia que mata Caco Barcellos, em 22 anos de pesquisa, mostra os fatos; faz da reportagem uma ciência do jornalismo.
Caco observou 3.846 pessoas mortas pela policia na periferia de São Paulo. Depois de analisar caso por caso, utilizando um jornal como fonte, a versão oficial da policia e os inquéritos na justiça e no IML, Caco prova que desses 3.846 mortos, 2.303 eram inocentes. O abuso da policia fascista nas periferias, na perseguição de inocentes, no assassinato de pessoas indefesas, que nos jornais é apenas mostrado como bandido é uma fotografia de uma verdade escondida pelo jornalismo cretino. Policias que matam e são absolvidos pela justiça, que ganham promoção na corporação; ainda mostra através desta pesquisa que os policiais campeões em assassinato, sendo que um deles ainda se elegeu deputado. Caco nos mostra a tática da policia quando assassina o inocente, suspeitos e mesmo criminosos: execução com vários tiros, inclusive muitos na cabeça. A retirada do corpo, para violar o local do crime e evitar pericia e um falso socorro para o hospital a fim de dizer que foi morto no hospital depois de trocar tiros com a policia. Um fato curioso é que essas 3.846 pessoas tinham diversas balas no corpo, muitas na cabeça e a queima-roupa. Os policias arrumavam uma arma e mostrava ao delegado que o morto utilizou na farsa de um tiroteio. Caco identificou muita destas famílias para saber a historia do assassinado e descobriu coisas que imprensa não faz questão de saber. Relatou casos dolorosos de ser lidos como a de um rapaz, que nunca teve envolvimento com crime, ser executado na frente da mãe.

Além de mostrar a história de gente morta a servido da ideologia racista, que degrada qualquer sociedade, Caco mostra de forma minuciosa como realizou a pesquisa durante mais de duas décadas, as dificuldades, as cuidado a paciência, a busca pelos familiares dos mortos, por sobreviventes, um verdadeiro manual para uma reportagem profunda e coerente com fatos.
Caco revela em Rota 66 que o jornalismo levado a serio deve ser profundo, radical e real. Em vez de esquecer o de hoje para noticiar o de amanhã: o preto, pobre assassinado, Caco quis ir além, quis saber toda a história, de todos os ângulos para mostrar que a mentira vendida como verdade na grande imprensa é o veneno do jornalismo descente. Mérito a caco Barcellos por fazer dos excluídos objeto de interesse no jornalismo serio que falta no maior parte da imprensa da elite racista brasileira.

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